domingo, 27 de novembro de 2011

A sagrada escolha

A vá. Se estás esperando uma benção minha então a tome logo de uma vez e vá para o diabo que te carregue, preste atenção porque ele carrega mesmo e te leva pra um tão fundo, mas tão fundo buraco que vais quebrar todas as tuas unhas tentando escalar as laterais lamacentas do buraco. Depois de um tempinho a sede chega, a fome, o desespero, as lágrimas e depois a desistência, tu sentas no chão do buraco, eis que o diabo lhe aparece e diz-te toda a verdade que tentei te dizer, e como tentei dizer, teria dito um bocado de coisas se tivestes me deixado falar. Teria dito muito mais se naquele conturbado dia tu houvesse atendido o telefone, me escutarias até cair tua orelha, mas tu? Nenhuma vez atendestes o telefone, tentei tanta vezes ligar, tanto que adiei a conversa para depois, para quando nós nos víssemos. Já estava tudo planejado, eu te diria as verdades, tu se concertaria e nós seriamos tão felizes quanto sempre merecemos ser. Mas vá, concedo minha benção para que escute teus pensamentos porque de qualquer maneira há uma hora em que todos sempre escutam o que ainda há por dizer.

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sábado, 10 de setembro de 2011

A proteção e calor

Era um sentimento esguio e com falta de sorte, semelhante a angustia de não se confiar a ninguém. Parada ali, ela abria a boca, mas não saia som falso nem sincero, estendia a mão que ia até um ombro alheio, mas não lhe tocava, não lhe tocaria. Recatada ali, sem som nem tato, nem o anseio de memória segura. Chorava, pois era para rirem com ela, não ria, para que ninguém gozasse dela. O velho ditado já não fazia jus ao dia. Pressentimento ruim, preocupação sem olhar a quem, ela vagava o coração em busca de alguém que precisasse de suas preces, curtas e objetivas orações sobre as quais Deus escutava calado e guardava para si sua opinião divina. Mandíbula presa, peito aberto, nariz corcunda. Tentava andar, tentava se mover, porém tudo era seca sem ti. Tudo era solidão, choro de um Buendía. Sem ti ela era triste e vaga, sem ti não existia chão, somente paredes que serviam de empecilho na visão de um horizonte. E contigo? Era mar, era prato cheio. Contigo ela sabia que nos tempos de angustia era você em quem ela pensava, se preocupava, olhava, bradava. E ela confiava em ti, amava você, retirava sua casca e você era quem você foi esse tempo todo, quem tu és hoje do lado dela, com ela, protegendo ela, acalmando ela.

Deve ter sido por isso que num desses belos dias ela saiu de casa e mala na mão para Deus sabe onde. A procura de ti, diriam uns, mas talvez fosse pela sorte de encontrar embaixo de um sino Ele, que lhe diria como rezar em pro das dádivas e em que se preocupar quando não soubesse mais que caminho tomar, que pedra carregar ou para que mão apontar. Ela havia nascido sem unhas e suas mãos eram frias e finas como as Dele e foi nesses belos dias que se encontraram e rezaram juntos defronte a qualquer coisa que obtivesse luz. Ela pediu para que seus desejos sobre os quais desconhecia o sentido, se realizassem, Ele pediu para que os desejos dela fossem atendidos, e foram. A partir daí foi só choro e reza, choro para quem te quer, reza para quem te deixa. Analuz como era chamada ficou conhecida pelas suas andanças e seu glorioso encontro com Ele, o dono de todas as plantas e cogumelos existentes. Acabou nem se preocupando mais contigo, esqueceu a angustia de não te ter, parou de te procurar. Foi então por volta dessas consequências que embaixo de chuva te encontrou, solitário, molhado, necessitando caricias, Analuz e um belo guarda-chuva grande para leva-los até a lanchonete vazia do outro lado da rua. Foram os dois correndo através dos carros, sem guarda-chuvas nem escrúpulos, molhados e novamente esguios, sentados um em frente ao outro sem dizer uma palavra, pois muito já havia sido dito com o tempo. Amaram-se eternamente e só. Ele olhando lá de cima sorria pela dádiva que entregara a terra, o amor.

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sábado, 6 de agosto de 2011

A Jamaicana prosaica

Jamaica, 21 de julho, meio dia a pino. Uma senhora careca senta ao meu lado no ponto de ônibus, ela cheira a pipoca de milho e cigarro, o perfume vulgar ainda molhando perceptivelmente sua nuca; resmunga numa língua estranha sobre um livro grosso e desinteressantemente preto acomodado no seu colo velho e negro. Suas vestes são delicadamente rosas, combinadas de propósito. Pra onde a velha vai? Olho-a discreta e curiosa de cima a baixo, a mulher tem tatuagens nas pernas que outrora foram musculosas, porém, ainda resistentes. Ela me olha taciturna e desvia o olhar para a rua barulhenta e desinformada. Eu aponto o livro e um olhar de dúvida. A partir de então descubro toda sua peregrinação quase centenária. Recordo-me apenas de uns miseráveis trechos da conversa, soube que se dizia vidente e um bocadinho alquimista, tinha noventa e cinco anos de idade, não largava o prazer de se maquiar todos os dias desde que tinha 12 anos, sua mãe nunca soube, seu pai muito menos, foi criada pela vida. Lembro-me muito bem dos seus devaneios a espera do ônibus, na minha medíocre ousadia de reproduzi-los foram mais ou menos assim: “Num dia qualquer como este eu ainda subo num desses prédios altos da cidade e grito, estridente, violenta, fazendo suicidar-se precipício abaixo as angustias. Tanto desejo vomitar os problemas meu anjinho, como anseio semelhante a qualquer mortal das terras, ares e águas conhecer a causa, o simples porque do: Nós somos o que somos e estamos onde estamos. Por que nosso coração bate e nossa consciência pesa. Por que as reações são impostas á medida das ações. Ter a sabedoria do porque dos sentimentos das tardes, das insônias das noites e muito remotamente do perfeito e inalcançável sono das manhãs. Anseio em suma conhecer os escuros do mundo, o que há por detrás de todas as formas de escrituras e então com precisa certeza dizer-me se devo ser feliz como a aurora boreal ou triste como o ápice da dúvida. Ou ainda que um meio termo eu encontre, já sendo de esperar; e a resposta da crença invisível me diga que tenho de ser por toda a vida a aurora e a dúvida, o coração e a consciência, os sentimentos e a sabedoria, o sono e a insônia de ser o que sou.” O ônibus chegou, não olhei o número, esqueci, talvez fosse o meu. Adeus, velha senhora careca, obrigada por compartilhar comigo alguns tragos de seu cigarro barato, suas pipocas de milho e seu perfume trivial.

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quinta-feira, 14 de julho de 2011

Could you be loved

É mentira que a morte nos encontra no mais póstumo beco escuro do medo, de supetão. Ela chega e sim, é inequívoco que faz as devidas saudações, prepara-te para o dia em que fecharás os olhos para o mundo, e até a mais fofoqueira das fofoqueiras guarda dentro de si o dia em que morrerá. Pelo caso de não saber, sabe-se ainda sim no inconsciente das fobias e dos choros convertidos em chuvas dos sonhos, pois morrer sem a fantasia dos devaneios é em sua essência corar sem ter o ego machucado, olhar sem ser olhado, eu não quero para meus filhos os meus próprios e miseráveis males, quem quiser arrancar da macieira uma laranja, faça bom proveito das lagartas buliçosas poluidoras dos maracujás.

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quarta-feira, 15 de junho de 2011

Calera

Desde então passou a usar preto até seu ultimo dia. Deixou para sempre uma eterna vassoura detrás da porta para expulsar toda e qualquer visita atrevida, repudiada desde seu pé esquerdo sobre o qual se costumava entrar. Calçava o par de chinelos mais velhos que tinha e presenciava o sol se pondo, escondendo-se no telhado de sua casa, fugia dela tão rapidamente e mal se podia contemplar a luz, já vinha o breu e junto com ele pálidas estrelas para vivenciar um já morto dia. Antes de dormir num longo sono lúcido, sem descansar as pálpebras, escrevia cartas a seres tão invisíveis quanto ela. As cartas eram usadas pela manhã, onde serviam de lenha para o fogão. Escrevia sobre tudo, o tudo que não vivenciava, o tudo de sua rua que não olhava, o tudo sobre o sol que nunca conversava, o tudo sobre os espelhos côncavos onde ela estava bem no foco, o tudo sobre o nada de tudo. Havia tanta coisa para se falar que duas paginas não bastavam para uma noite. Era uma criatura atrasada na caminhada do mundo, onde todos iam a frente em mais de dez mil passos dela. Ela ia atrás sozinha, amassada, renegada, chorosa, venenosa, azeda, Calera ia atrás de todos, levando nas costas os pecados dos outros, com um escudo forte que a protegia de todos os sorrisos do mundo.

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quarta-feira, 1 de junho de 2011

Sentimentos redondos

As pernas se assemelhavam as de uma galinha, tão curtas que eram. Ainda carregava os pés pequeninos de uma criança. No decorrer dos quadris e cintura era um violão desafinado. Os seios amáveis, porém nada maternais: seios de uma prostituta virgem. O sexo se arredondava nas dimensões dos sentimentos. Uma solidão de cor inundava suas mechas em redenção aos ombros. Seu paladar era aguçado, talvez porque não escutasse nem enxergasse muito bem. Sentia cada língua em sua língua com veemência, como se decifrasse todos pelo gosto que tinham. Particularmente. Suas mãos eram jovens e firmes. Sua postura exigente. Catalina se refugiava na varanda bordando ponto cruz com uma paciência interminável, até o sol dizer adeus e então Catalina abrigava-se novamente na sala, sem o ponto cruz, lia, desenhava, ou o que viesse a mente. Nos dias em que não se ocupava no marasmo, batia-lhe a porta Cosme, que com uma doçura enjoativa trazia-lhe presentes de todos os tipos vindos da Arábia ou de algum ponto esquecido na Europa. Trazia-lhe linhas em cores tão diferentes quanto seus pavões de ponto cruz ficavam. Cosme lhe dava cartões postais românticos em lugares sobre os quais eles nunca iriam se atrever a visitar. Trazia-lhe também instrumentos de cordas, todos que se podiam imaginar, violinos ensolarados. Trazia-lhe caixinhas de músicas onde uma bailarina solitária rodava sem parar numa só posição cansativa.
Enquanto pontilhava o pano, no vai e vem da agulha, Catalina espetava-se de boa vontade para agravar uma adrenalina ao seu dia, isso não bastava, pois Catalina havia encontrado maus costumes, trancava-se no banheiro varias vezes ao dia e chorava num desespero silencioso. Ninguém sabia quando ela chorava no banheiro e se soubessem não saberiam então dizer o porquê de tanto desespero. Cosme era nulo aos pensamentos românticos de Catalina. Assim como qualquer moço nas redondezas esquecidas pelo tempo, pelo mundo, esquecidas pela natureza das coisas. Eis que de tempos em tempos, bem como anos em anos, os ciganos visitavam o povoado, traziam suas artilharias e seus lenços cheirando aventura. Cobravam tão caro quanto se podia cobrar do povoado, pelas suas descobertas impertinentes sobre o mundo que conheciam de cabo a rabo. Suas formosas e imundas dançarinas encantavam todo o âmbito masculino do povoado. Cobertas e logo pesadas ciganas com suas miçangas coloridas, elas esperavam na tenda os jovens em busca de colonizar estrelas. E tornava homens, cada menino que ali entrava. Catalina enjoativa das lágrimas e de certos outros maus costumes como receber Cosme em sua casa atravessou a porta de saída e em passos longos, quase saltitando, foi até as tendas. Esgueirou-se entre as tralhas dos nômades e então, despiu-se das roupas e vestiu-se das miçangas coloridas. Deitou-se na rede e esperou, era noite e tudo estava num breu ilimitado de solidão. Quando sentiu uma respiração pesada, se remexeu na rede e penteou as sobrancelhas com os dedos frios, finos e firmes. Uma mão brusca apertou o pano rente à rede. Catalina continuou sem dizer uma palavra. Tateou a solidão da noite em busca da respiração do rapaz invisível. Encontrou seus ombros ao passo que ele encontrou sua cintura de violão. Catalina havia perdido nas lágrimas o paladar aguçado, mas conservara intacta a loucura do coração. Catalina e Cosme brincaram a noite toda. Pelo amanhecer quando Cosme já havia ido, ainda no escuro. Catalina esgueirou-se de volta a sua casa, sem que ninguém a percebesse, sentou novamente como todos os dias de sua memória na cadeira de balanço em frente às begônias da varanda e começou de onde havia parado a pequena pena de pavão reluzente. Quando Cosme chegou neste dia, não lhe trouxe nada nas mãos, porém seu rosto trazia um rastro de homem, Cosme percebeu também no rosto de Catalina uma aparência menos prostituta e mais santa. Daí em diante os choros no banheiro cessaram e as bailarinas nas caixinhas de música caíram de moda. Catalina e Cosme casaram-se três meses depois. Devido às temerosas insistências dela em não deitar-se com seu marido, foram ter um único filho três anos depois. Na noite concebida Catalina sentiu no paladar um deja vú descomunal, Cosme lembrou-se misteriosamente dos instrumentos de cordas. Ela sabendo sempre que ainda que tentasse nunca sairia daquele povoado, nem parte dela, nem ela inteira. Nem ao menos um postal de si mesma ela receberia. O destino lhe pregava um conto tortuoso e os maus costumes, a solidão da noite e as miçangas pesadas voltaram.

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A filosofia de Lionel

Ele sentou num banco improvisado e chorou, fumou tantos cigarros incabíveis nas minhas duas mãos, perdi a conta, nem prestava atenção nisso, talvez, pensei uma vez só, e não pareceu importante. Ele me mostrou várias coisas, inventou outras muitas. Suas lágrimas roncavam no nariz, e a mão não saia dos olhos. Ele olhava sempre o chão ou de vez em quando apontava o olhar em mim. Passaram-se as horas, logo depois passou-se a chuva, passou-se então a paciência, e eu fui embora. Mas como pode no meio do clímax o protagonista desaparecer? Como pode o nexo não existir? Pode o sujeito ser literalmente inexistente na oração? Bem depois do sentido vem a contradição. E ele só soube conjeturar o meu sotaque do norte, como se um ensaio fosse pertinente. Bebeu o único café que pedimos, em goles envenenados. Soube amar quando devia isso ao mundo. Soube mentir sobre seu verdadeiro sentimento. Tirou um lenço do bolso e limpou as poucas lágrimas tímidas; os olhos em épocas secas. Bateu o pé direito, lembrando a nona sinfonia: não teve regresso. Contou algumas moedas ao pagar, não obteve troco. Não obstante, ele queria ir até lá fora, mas eu não iria, estava frio. Eu tinha um teto e saberia deixa-lo fixo para sempre, nada de empurrar a vassoura para reclamar sobre a bagunça do andar de cima. O calor depois da chuva foi um sinal de que eu teria uma noite em solidão, tortuosa. Na vila tinha sempre um delírio. Os mosquitos esgotavam-me os dedos ao espanados. O olhar amarelo de algumas pessoas me dava também sempre maus pressentimentos, ele não tinha um olhar amarelo, embora não fosse branco como uma pomba. Na minha lembrança a cor estaria mais para invisível, inexistente. Ele foi. Eu fui. Para dois caminhos diferentes. O meu tinha ipês amarelos e uma lama turbulenta ao sul, no inverno. Leite quente que recebia gentilmente todas as intermináveis manhãs. Ele deve ter perdido bem mais que um pôr-de-sol ou o visto inconsciente na praia. Eu não tinha o mar, mas tinha toda a ventania suculenta como agridoce. Eu vivia aqui. Ele vivia lá. E enfim sempre pensei se eu também tinha uma vida paralela a esta, outras realidades: após grandes decisões.

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Os olhos das castanholas

“Era uma vez, uma pequena menina que de uma hora para outra se viu nas aventuras de Alice, em meio a um mundo de maravilhas, ela conversou com uma lagarta, comeu diversas coisas de formas e cores diferentes, adorava as cores ainda que seus olhos fossem a ausência delas, a menina se viu num mundo tão ligeiramente dela que de olhos fechados ela viu o mar junto às estrelas, do lado à lua, do outro o sol e todas as coisas do universo, porque para ela o mundo parecia estar diminuindo, coitadinha, o mundo já era tão pequeno. Porque também ela encontrou cada pato estranho cantando numa afinação de sino. Porque ela até não soube responder muitas perguntas. Porque tinha cada rei e rainha lhe narrando sobre as cartas estarem tão bagunçadas. Porque ali tinha cinzas e ali tinha lenha, o fogo ultimamente, não mais se encontrava naquela aldeia. [...]” Como seria nostálgico se Helena prestasse atenção, entretanto ela estava preocupada demais com os legumes que iria comprar num Allmart, logo depois de ter de entregar filmes numa locadora abafada em plena sexta chuvosa. O documentário polêmico se desenrolava na televisão pequena no fundo da loja. Praticidade é um prazer do dono: pequeno e portátil. Helena havia alugado na quarta, dois filmes, um sobre al-qaeda para Jarbas, assuntos políticos envolvendo religião o deixava tagarela. Outro sobre a vida, algo de Woold Allen. Ao sair empurrou a porta ao invés de puxar, não tinha um aviso e todos da loja lançaram os dois olhos para ela, menos um pássaro no canto junto à vitrine onde bicava sua água tranquilamente. A manhã mais parecia um entardecer e Helena se sentiu confusa sobre as horas, olhou no relógio e muitas outras vezes mais, se certificando de que era cedo demais para voltar em casa. Depois dos legumes estarem numa sacola frágil de plástico, ela andou em passos lentos até a Rua das Castanholas. Uma ótima hora para acender um cigarro, mas Jarbas estava em casa para o almoço e Helena não se sujeitaria a criticas secas com toses mais secas ainda, não nessa sexta. Chegando: Ele certamente estaria enterrado no trabalho em seu note book implacável. Helena fez um frango xadrez, depois se juntaram os dois na sala para ver poucas notícias e qualquer filme legendado perdendo-se pelos canais da TV a cabo. Estava com trinta e tantos anos. Jarbas tinha os seus trinta e mais alguns tantos. Helena e Jarbas sentavam-se todas as sextas e deliciavam a paz reconfortante para ambos, havia mais de vinte anos. Fumavam um cigarro na varanda e numa tarde calorenta e lacrimejante dormiam: o sono era como uma linha sendo costurada com elegância e destreza. Não se importavam com o dia em que haviam sem o parecer dialogado com uma lagarta, se empanturrado de pipoca e seus temperos misteriosos. Ouvido ópera num show de talentos. Deixado tantos espaços vazios nas Diretas do Coquetel. Lido crônicas pra boi dormir e claro, haviam comprado mais de um isqueiro por mês. “A questão era mesmo “o quê?”. Olhando em volta, viu as flores do mato e as folhas de capim, mas não conseguiu encontrar nada que parecesse apropriado para beber ou comer nas circunstâncias. Ali perto, crescia um cogumelo grande, mais ou menos da mesma altura que ela. Depois de procurar em baixo dele, dos dois lados e atrás, ocorreu-lhe que podia também tentar ver o que havia em cima dele. Esticou-se toda e ficou na ponta dos pés, espiando por cima da beirada do cogumelo. Seus olhos imediatamente deram com os de uma enorme lagarta azul, sentada lá em cima, com os braços cruzados, calmamente fumando um cachimbo oriental bem comprido e cheio de voltas, sem prestar a menor atenção nela nem em mais nada.”.

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Roxxie se meteu em confusão

Eu me lembro bem do dia em que Roxxie chegou à escola correndo, abrindo os portões que já não mais se abriam para os atrasados, sua barriga pulava para cima e para baixo numa indecisão violentamente rápida. Seus pequenos coques de cabelo, loiros, eram imperceptíveis, os olhos vermelhos e a testa suada, as têmporas pulando em simetria. Roxxie parecia cansada, em tédio e assustada, se antes não fosse o marasmo a que tinha se submetido. Palavra por palavra foi dita e enquanto isso o medo mau lhe passou pela cabeça, mas depois foi como uma tsunami em sonho, certeiro, apunhalando suas vítimas. É assim uma descoberta, quando é desvendada.

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terça-feira, 3 de maio de 2011

Audição

Como se uma onda enfim entrasse em meus ouvidos gigantes e banhasse a cavidade de supetão, passando tudo, passando xingamentos, agradecimentos, desculpas, passando tudo, até o que eu não queria ter escutado: Indo até o outro ouvido com velocidade implacável, pesando o outro lado, primeiro aqueles pinguinhos de leve, depois a onda outra vez fazendo o que as ondas fazem, levam tudo: porque quem carrega tudo é o mar, o mar que sempre quer puxar e implorar para a onda, que sempre é tão demasiado rebelde e quer sair, a qualquer custo. O mar vê a onda: Você saindo sem mais nem menos, mas saindo rápido, tão apressada, com violência, correndo ao encontro do mundo, tudo que consigo ver são seus pés. Você tão assustada quanto eu. A onda vê o mar: Você sem-aforismo apertando o gatilho, me puxando com violência. Você que nem ao menos vê meu rosto, colocando o pé para que eu caia. E eu escuto, se escuto então falo.

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terça-feira, 26 de abril de 2011

Não sei não conheço isso nasceu ai

Nasce lá longe a nossa estrela amarela, saindo de uma noite obscura e fria, o dia carrega uma vela pela metade, em desígnio há uma temporada cheia de enormes bolsas nos olhos e vontade de dormir. Mas para onde vão as estrelas quando estas morrem? Não deve existir certo antro que as deixem entrar. Elas desaparecem do mapa; e para onde vão as místicas estrelas depois de sua morte e dissipação? Numa caixa de leite elas não estão. Adelha observava as estrelas corriqueiramente no seu telescópio de segunda mão, tão arranhado que parecia estar no fim da vida, pois já tivera uma existência longa de estrela. Ela não sabia nem como nem porque todas aquelas estranhas e engenhosas estrelas estavam ali no céu flutuando pesadamente, como quem não faz aquilo com naturalidade, faz por ter nascido de um jeito bonito e seu destino é ser pulcro até a chegada de sua morte furtiva; como se para flutuar fosse preciso nascer daquele jeito, certo sangue azul nas entranhas. Elas precisavam flutuar para viver, como a formosura precisa ser demasiado olhada para durar. Não lembro ao certo em que noite ou ano aconteceu. Num dado momento de terror uma estrela visitou o quarto de Adelha, flutuava ainda, mas era tão pesada e assimétrica que não chegava a ter seu merecido nome. Encostou-se numa poltrona surrada e antes limpou seu acento para não ofuscar seu brilho fosco. Pediu uma cerveja apenas, porque queria esquecer algumas coisas bem como quando queremos esquecer um pesadelo ou o trabalho, Adelha e a estrela foram para o quintal e lá perceberam as outras estrelas flutuantes e birrentas, brilhando para si e somente si, sem rumo de uma vida futura. Foi então quando a estrela ao lado de Adelha chorou, alagava o quintal de brilhantes rosas amarelas e gritava baixinho seu pesar sobre ser uma tão brilhante e triste estrela, sobre seu fulgor não fazer o menor sentido para si, sobre querer ser Adelha e em seguida ela excomungaria todas as estrelas somente por serem estrelas através do seu telescópio de segunda mão caindo aos pedaços, e seria feliz, mesmo sem brilho, mesmo sem um tão perceptível peso sentimental, ainda que tivesse em suas entranhas um gosto azul enferrujado, a estrela ao lado de Adelha seria a estrela mais feliz do mundo porque ela sabia que lá no fundo todos nós sabemos para onde vamos depois da morte.

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segunda-feira, 18 de abril de 2011

Desenvoltura

Podemos jogar coisas no telhado, e como podemos. Aquilo de que participamos principalmente. Ouve um tempo em que amar já não era cabível no vocabulário e eu joguei um montão de coisas fora, era mais para me livrar daquela tralha toda que para lembrar que tinha um telhado, é que o telhado me doía tanto: daquele jeito do como nos cortamos fácil sem perceber, o sangue alarmante fica perambulando por um tempo na epiderme e finalmente: dá seu grito de morte: o meu olhar: O que reconhece o erro, o que pede perdão é outra historia completamente diferente, pois se tem que amar para se ajoelhar e suplicar. Eu que não rolo no chão e dou a patinha para algum contraponto, posso até dar uma olhada e tudo o mais, de modo à vez ou outra me deixar levar na maré até como quando o suposto amante de Capitu morreu, pois é deveras hipotético. Eu gosto de pensar nas coisas como se eu as fosse. Talvez se pensar nisso a todo o tempo, eu tente me tornar até em coisas más, salgadas, impenetráveis, as paixões sem os terríveis e inexoráveis fundamentos, o nexo. Eu não queria na maioria das vezes ser quem eu era, apostar as fichas mais valiosas num ser sem apelido nem cidadania ou pensamento político, preferia mais que mil e uma vezes pensar como os sábios, que de tanta destreza acabaram sendo somente e nada mais que sábios; o louco já não tinha espaço no que eu em superioridade me imaginava ser. Em quanto tempo eu iria me tornar dentro do meu destino? Passaria tempo até eu descobrir ainda naquela época que nunca, nada, me transformou, encaixou-se, tudo bem, moldou-se... E de forma alguma sem duvidas não me modificou. Porque ao passar pela chuva me protegi com as mãos. Porque quando eu precisei antes eu ofereci com a mão cheia, ainda que fosse de unicamente apreço. Porque quando me mostraram um inseto asqueroso e eu o matei e depois pensei em como uma parte de mim já foi barata, foi ai que eu entendi: “Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito”.

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segunda-feira, 4 de abril de 2011

Romance

Eu adorava o jeito como ele olhava pra mim quando eu achava que era dona do mundo. Eu sei que estava certa quando disse em minha defesa que você sempre me entenderia muito mal, sempre tão mal: Mas os ventos foram passando e com ele deixando em nossos olhos ciscos cavernosos: Um ia tentar atear o olho do outro e vice-versa, mas não conseguiriam pela falta de equilíbrio que os ciscos nos deixam. Cada um ia viver ao lado do outro pensando, arquitetando, imaginando, colorindo um plano para tirar o seu próprio cisco rabugento. E a cada dia que passaria iriam se afeiçoando e deixando estar. É eu sei que seria assim porque foi assim. Verdade seja dita, depois de um tempo nós mais parecíamos ser casal por conveniência: Um tango sem sal. Eu sabia que eu ia ter de ficar calada se quisesse sobreviver...

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quinta-feira, 31 de março de 2011

Verde-azulado

Tem umas flores no meu jardim, desde que cheguei aqui já tem essas flores, num tão antigo jardim. Eu fui atrás de pessoas mais experientes, mas ninguém nunca quis pegar nessas flores, e olha que num jardim tão lindo, alegre, sem dor, pensei que nenhum mal faria e claro, quis beijar minhas flores, resultado: eu tinha um raio de sol no meu jardim. Então eu comecei a me sentir tão jovem, ainda que já não fosse, como se eu fosse junto dela mais brilhante como naquelas rodas-gigantes, gigantes. E foi um dia tão instigante, o dia em que decidi beijar minhas flores, sempre esperando uma roda-gigante brilhando ao meu redor, com calma e dentes brancos, eu esperava uma roda-gigante. Eu bem sei que todo mundo está querendo saber o final da historia, sendo assim apresso-me a terminar, pois falar de flores me custa muito, me emociona: Dali a pouco, alguns tiveram inveja das minhas flores, como os ateus tem inveja da fé, e foi como se um vendaval tivesse passado despercebido, minhas flores murcharam todas, tão rápido quanto meu piscar de olhos, minhas flores morreram, mas ainda viviam nos meus sonhos, e logo sonhar também não foi permitido, ordenado pela inveja, alguns corriam o risco e ainda sonhavam nas noites de verão. Ao contar essa historia, eu penso certamente nos meus amigos, aqueles sim viveram muito comigo, não só passaram não. Todavia eu acho sobre o povo de sessenta: São enormes tecelões; fizeram grandes cabeças que ainda vivem por aqui; Acham ao beijar essas flores a melhor época de verão da vida: Quando tudo é colorido e as rodas gigantes estão cheias de casais apaixonados jogando conversa fora, a cor do mar então, é demasiado bonito como a cor das flores de até então.

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quarta-feira, 30 de março de 2011

Flor-ave, ave-flor

Eu estava certa de que seus olhos ainda iam apontar em mim. Como sua cabeça se inclinava um pouco, parecia-me que nunca olhava pra nada, embora eu não tenha estacado para imaginar nada que você se depusesse a olhá-la. Só eu; ainda que sem acreditar, pois não havia em mim força maior que me dissesse que eu nascera para viver. O caso é que foi um deslumbre te ver embora não tenha permanecido inerte como dissera a mim mesma, foi mais uma graça sem perceber, um perfume de cor sem cheiro. Você me achou e eu achei você, e não me deparei com afago nos olhos, senti mesmo foi uma espinha na garganta, cortando fino e fundo descia goela a baixo. Ainda a sinto aqui encalhada no meu pescoço, digo isso, pois certos dias que sinto te ver bem raramente, olho-te como se fosse a primeira vez que te visto: Com os meus olhos e minha cabeça. Espera-se que uma flor seja como a ave, coloridas e embaraçosas, se é assim então somos flor e ave, na ordem que quiseres.

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terça-feira, 22 de março de 2011

Eu sempre quis saber por que tudo terminara tão seco, sem vida, lotado de fome e saudade, transbordando outono. Talvez já saiba, talvez nunca saberei. O fato é que me lembro bem a ultima vez que você me olhou, levantou uma sombracelha e disse frio congelando meus cílios, disse aquelas coisas que as pessoas dizem quando se vão para sempre. Minha lagrima inconfessada beijou os cílios e derreteu o gelo que lá havia. Eu não falei nada sobre ir, sempre fui dessas pessoas fracas e miseráveis, da turma dos sem coragem. E recusei-me a olhá-lo, passei a mão pelo pescoço, cocei a cabeça, coloquei a mão no queixo mas não olhei-o, não me deixara, não me deixaria nunca por ser anêmica, tanto. Nós começamos quentes, cheios e movediços e quem sabe tenhamos terminado fracos porque você não soube economizar, bebeu-me toda de uma vez, esgotou-me e você sabe, eu sei, todos sabem que nunca tive fonte, que eu sou só. Eu dizia lenta que o amava, dizia com cuidado para não quebrar-te em pedacinhos de amor vermelhos que me cortariam de dentro pra fora. Você não queria devagar, prestando atenção, queria rápido, naquela mesma hora. Se me amava, amava-me mil vezes seguidas, se me odiava, odiava-me tão doído e incansável. Você não sabia desistir insistindo, não beijava as partes, não gostava das preliminares doces, tão doces. Você era tudo e mais um pouco, eu era aquela parte tua, aquele segundo misterioso. Eu me desculpava sem nada ter feito. Mas que raio de pessoa obscena eu era? Levei a culpa por tantas injurias de fora pra dentro, fazia com que não vistes quem era culpado, era você meu bem, eu lhe encobertava com um extinto materno e atropelava-me, eu me matava sempre ao fazer isso. Você rastejou de cede e disse; eu sei que você é só, de fora pra dentro e de dentro pra fora.

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sábado, 19 de março de 2011

Uma vida suada

Talvez as aventuras de Matilda tenham sido tão imperdoáveis, ela balançava, corria, ria e brincava, até rimava às vezes a vida dela, de tão linda que era, o viver. Ela olhava pra mim e piscava os olhinhos redondos rindo tanto e sempre que até me contagiava as vezes, bem as vezes posso garantir, pois Matilda dormia ao meu lado na cama todo santo dia, e só dormia mesmo, porque sexo que é comercio bom não tinha. O leitor sabe quando tem algo errado na concordância da leitura, minha vida era o meu livro e o leitor era eu, deveria ser o escritor quem sabe, mas não, quem traçava cada passo meu era a maldita da Matilda. Pois sim! Provei com meus olhos quando li num capitulo, ela me traindo. De boca aberta ia de encontro à outra boca suja que passaria horas depois todos os germes para minha pobre boca inocente, pois eram dos pensamentos que saiam todo aquele palavreado asqueroso. Eu era um homem, embora me sentisse ao lado de Matilda um pato, ela era formosa, vistosa, eu era tão neutro, do tipo transparente, mas não daquele jeito que todo mundo sabe o que se passa dentro de você, bem mais no sentido de ninguém me ver. Eu tive Matilda algumas vezes na minha vida. Uma vez não acabou, outra vez ela parou e outra ainda me lembro bem eu consegui e ela bocejou. O que a fazia continuar a deitar-se ao meu lado eu não sei, ela disse uma vez que se sentia protegida, eu duvidei como pouco duvidara até aquele dia. Mais a vida continua, mais gente sua, era bem assim, uma vida suada. O sol parecia queimar minha cabeça até pela meia noite, sei agora que não passava dos olhos de Matilda olhando de cima para baixo, onipotente sobre mim. Ela um dia gritou; olhe para cima, estou falando com você; e foi como se me fizesse perceber porque a desgraçada continuava ali, gente que gosta de mandar é assim mesmo, a qualquer custa quer decretar sem saber de hierarquizar. Eu vendi minha alma ao diabo e é sem devolução.

ap.

quinta-feira, 3 de março de 2011

O céu dos arrojados

‘Eu só sei dessa época da Dona Cátia porque ouvi dizer. Ah, a rua toda estava sabendo, só quem não sabia era a família dela, o marido corpo lento que trabalhava o dia todo e o filho franzino de cabelo espichado que tinha um cheiro estranho. A vizinha dele, Olga que o diga, quando entrava no elevador todo mundo ficava com cara de interrogação. Bem, depois que Dona Cátia se mudou de lá, esse foi o comentário, se já não o era... ’

Jorge estava no quarto. Como qualquer adolescente de porta fechada, fumava um baseado na janela, ainda que os vizinhos o descriminassem e a luta fosse sempre pelo respeito, bom, ele não ligada. Dona Cátia se olhava no espelho furtivamente, essa sim havia de ter o que esconder, levava uma vida tão pacata que só quem tem um grande segredo consegue levar. E era uma pessoa daquelas simples de confiar, onde todo mundo põe a mão sabendo das chamas. Ela correu em passos curtinhos no seu salto dez, em punho marretou a porta de Jorge e disse que ia ao mercado. Eram quatro e meia da tarde, o sol a pino e um grande anoitecer por vir. Jorge em seu quarto procurava o cachimbo. Dona Cátia em sua sala olhava para trás. Os dois se esgueiravam na fantasia de ser livre dentro de uma piscina funda e camuflada, a televisão mostrava os finais felizes, os desenhos as risadas mais alegres, os jornais nos explicavam diariamente que um dia morreremos de desastre ou coração partido, um espelho dizia a verdade e o baseado agia sobre a mente, ia mais a além. O que Jorge e Cátia tinham mesmo em comum não eram seus segredos, era mais a maneira como escondiam, dentro de casa ninguém imaginava ou dava conta de supetão, mas na rua todo mundo comentava.
Cátia, como era chamada pelo professor, andava espevitada ao seu lado sempre olhando para os lados, ora, não porque estava se escondendo, mas sim porque estava se exibindo, era uma vontade tão enorme de lhe falar sobre o que passava em casa que de minutos em minutos para não sair dos trilhos dava gritinhos apreensivos dentro de sua saia rodada. E eles rodavam, tanto que a deixava zonza, o que nesse estado ser levada pelos grandes e firmes braços do professor não era nada mal, Cátia roçava vez em quando a mão sobre seu pescoço raramente suado. Era casada, mais pela força da razão que do coração e usava aliança. Dona Cátia ou Cátia, que seja, só queria sair de seu apartamento abafado e ter alguns minutinhos de fascínio no seu oásis bege e suado. Jorge não sentia o contrario; como um rei, tinha o seu leão ao lado e sua erva na gaveta. Cada um toma o céu que quer para si, eu particularmente prefiro aquele pedacinho azul que vende na praia.

ap.

Pedras venenosas

A verdade é que a gente demora um pouco pra perceber, a verdade é que exatamente a gente tem certa dificuldade em ir pelo caminho chutando as pedras, tem sempre que parar, chegar perto da pedra, cheira-la, lambe-la e olha-la. O caso é que eu andei por aquele corredor na esperança de estar deixando só mais uma pedra do caminho. E olha que eu quis tanto ser teu alento garantido em dia de chuva, ora, eu me dediquei mesmo sabe, quero que você perceba que eu fazia tudo por você enquanto tinha vontade, depois foi tudo questão de honra, pois aquele que se dedica, dedica-se até as ultimas gotas. E eu sangrei por você até a ultima gota. É que tu não foste o meu alento, eu necessitava de alguém naqueles dias incertos, sem nenhum livro pra ler, sem dinheiro pra ir ao sebo, enchia-me de água porque queria afogar o que houvesse dentro de mim, tentava me afogar em água porque não poderia em você. Eu dizia boa noite a mim mesma e não escovava mais os dentes: Estava em estado de putrefação. É que algumas pedras são tão grandes que caem nos esmagando, obrigando-nos a seguir num novo caminho.

ap.

Ainda que eu seja

Ainda que me chames de tola e digas para si mesmo que comigo não vai ficar eu esperarei quietinha ao lado do telefone, um dia você há de lembrar as teclas que são para apertar em sua veemência desatinada e vais falar comigo, sei que vai, vais pedir desculpas, pedir para que eu te deixe voltar, pedir um abraço, sei que vais, vais pedir paz a mim que sem resposta desligarei bem na tua cara, sem escrúpulos e sem razão, pois foi você mesmo que me chamou de tola outro dia. Porque só irás ligar e convocar minha presença se antes me ofender e agourar cada minuto do meu dia, sempre foi da tua natureza dar valor ao que vem do ferimento, da dor, não que sejas sádico ou impetuoso, mas sim porque talvez gostes de cuidar de algo pisado, amarrotado, feito o meu coração depois de tuas injurias. Desligo, pois tu tens que cuidar do teu coração demasiadamente mais pisado que o meu, tu que tropeças nos teus próprios sentimentos e os machuca sem pedir paz.

ap.

Eles

Ainda que eu soubesse de onde vinham eu não saberia como me opor a eles. Havia neles uma piedade ansiada sobretudo por mim, mas acima dessa clemência havia também, junto à cruz algo glorioso, de tamanho sem tamanho, pois então, não era algo que se podia simplesmente dar-se um resultado, não era uma solução, eles tinham seu próprio estado de vivência, o que lhes dava somente esse estado como qualquer adjetivo ou substantivo atribuído a qualquer coisa ao nosso redor, mas não eram limitados e nem tão pouco redondos, não havia neles rotação ou translação, não giravam em torno de si ou de coisa mais brilhante, iam rumo ao universo, visitando e sendo o infinito. Eles eram lindos como as ondas e grandes como o mar, eles que nem sabiam de onde surgiram e falavam tanto que nem precisavam de voz, só era preciso eles ali junto a mim e tudo estava assentado, eles eram completamente certos e não me deixavam sombra de duvidas sobre seus assuntos porque eram especialistas no que faziam e faziam tanta coisa, principalmente voavam, o que me deixava bestificada, de boca aberta eu via-os alçando vôo, eu que nem sequer tentara voar mas que numa tentativa não feita cai de asas do chão, eles me disseram que ainda me restavam as asas ilesas e que voar só poderia ser feito com sigo mesmos.
Eles ainda são tudo isso, são os teus olhos.

ap.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Para sempre teu

E não saia do meu pensamento embora a saudade aumente, eu quero te ver. Preciso te ver minha flor, você é minha flor sabia? Dei-lhe esse apelido, pois sempre costumas usar estas estampas de flores e tens este aroma de flores. Costumo tão sempre lembrar de você, o brilho dos seus olhos e suas grandes bochechas que eu quero apertar e claro e sempre amar, seus cachinhos às vezes fora do lugar onde eu quero encostar-me, fechar os olhos e então fingir que estou dormindo, pois quem dorme um ao lado do outro tem uma familiaridade que quero ter contigo. Quero sim ver o por do sol junto a ti, todos que eu puder, sabes que não se pode perder o por do sol, pois, já perco, perdemos o nascer todos os dias. E é evidente, não serei mentiroso, é inequívoco que quero te possuir. Agarrar-te e morder seus ombros, mas isso apenas se me permitires e se na medida do possível for possível, porque não quero forçar nada, não quero que nada mergulhe dentro de mim sem saber nadar nem que nada nasça sem saber viver. É que as vezes me sinto tão sozinho e precisar de alguém é tão corajoso e dizendo isso em seguida choro porque vejo teu choro e sem pensar em entender te sigo onde tu vais nesse pranto tão calado e intrigante, mesmo no escuro aperto tua mão pois ela merece sempre ser abraçada de tão delicada e pequenina que é dentro da minha. Desde o começo venho pensando em ti, seria até infame dizer, com detalhes os pensamentos, pois somos jovens e perdoavelmente inquietos, mas venho pensando, pensei uma vez que fosse até demais e então me repreendi, pois tudo que tenho é seu, assim sem reprimir nem regredir.

ap.

Relato frio

Ai pediu pra eu escrever uma musica pra ela, foi uma coisa mesmo meio encomendada, um amor de propósito eu costumo dizer. Ela me forçou a amá-la, como no mar, eu um menino magrinho sem saber nadar, ela como a onda me arrastando pro fundo. Vocês entendem? Acontece que o menino magrinho esperou o ano todo pelas tais ondas sem saber que estas tais ondas o levariam a uma perdição salgada. Hoje quando eu voltava pra casa vi uma grande porção de borboletas na rua, as borboletas nem eram grande coisa, pois eram da mesma cor que sempre costumam ser: Amarelas; o que deixava a situação notável era justamente a quantidade delas na rua. Minha mãe na sua incansável lógica para tudo falou sobre a causa de tantas borboletas: Primavera. Eu já penso diferente, soube na hora que se tratava de um sinal dela, de começo ou fim, da no mesmo. Era um sinal, até porque a minha musica dela fala sobre borboletas e daí eu acabei por ligar as coisas, embora se na musica não houvesse nem lagartas eu haveria de achar um jeito para justificá-la em qualquer súbita lembrança. É, eu costumo ser assim mesmo, sabe... Meio eu, meio qualquer outra coisa e ela não, ela sempre costumou ser toda ela ou toda qualquer outra coisa; talvez tenha sido precisamente isso a causa do nosso afastamento: A diferença ao se tratar de nossas personalidades, porque os opostos não se atraem.

ap.

O título de Hipólito

Houve-se uma cadeira rangendo-se. Paira mistério na sala. Hipólito está tenso, as escassas partes do seu rosto não cobertas pela sua monstruosa e peluda barba grisalha estão vermelhas como sangue, de alguém vivo, e suadas desesperadamente como se chorassem rios de lagrimas salgadas. Talvez chorassem, mas dessa vez não estavam para brincadeira. Cortou o frango de modo tão neurótico e o dilacerou como uma baleia se alimentado de camarões minúsculos que ao fim posou sua gorducha e nauseante mão na superfície da mesa e riu-se. Debochou maldosamente de sua cara gorda, tal inescrupulosa e seu caráter duvidoso. Ia até se levantar e ir até a varada, mas riu-se de maneira tão secretamente gritante que preferiu rolar-se pelo chão, somente rindo-se. Entregando-se a ele mesmo de não sei que forma.

ap.