sexta-feira, 24 de setembro de 2010

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Amélia se deitava e encostava as pontas dos dedos gelados nos lábios, embora rezasse ela sabia: Os finos lábios de Otto eram doces e quentes como cocada recém feita. Ela esperava um dia poder senti-los, os lábios, cada um de uma vez e só assim não mais precisar das cocadas da preta numa tarde qualquer em que ela calada via o doce do lábio acariciar o doce do doce e sentia ciúmes. Pois é, Amélia sentia ciúmes da cocada, mas veja só. Otto não sentia ciúmes, os lábios de Amélia eram virgens de doce e fogo. Amélia adormecia Otto também. O dia seguinte viria, eles sabiam, por isso dormiam. O cobertor se sabe frio por aquele que confia. As pupilas de Amélia enxergavam outra vez o mundo que espera a tarde chegar, ou era somente ela que a esperava? Otto também esperava, esperava as cocadas e Amélia, para não serem por demais sinceros um com o outro, havia a preta: Ottinho estava por ali oras, com duas cocadas porque Dona Gil sempre dava o dobro do que ele pedia, Amélia como de costume também estava em sua casa, era menina de família e não se excedia a serotonina caprichada do doce. A preta e o sol deviam ser amantes. Pois justamente não importa o que se passe, os destinados serão sempre e para sempre prometidos.

ap.

Desquite

E pararam então de se olhar por uns minutos porque essa coisa às vezes cansa e manter a brisa da tranqüilidade é relativo. Acabaram se arrumando um para cada lado porque isso às vezes pode atrapalhar qualquer um e ninguém está aqui para ser confundido e injuriado. Não sei ao certo se era tarde de alguma coisa, pois quase sempre a tarde é de nada e inventar seria agourar acometimentos verdadeiros. Pela porta passaram um de cada vez porque dois corpos não mais ocupam o mesmo lugar no espaço e tentar seria o mesmo que fracassar, impiedoso fracasso que seria o de apostar na via interditada do ser. Dormiram na mesma cama, comeram na mesma mesa e dividiram até o mesmo frasco de alguma coisa inútil, mas isso sem se olhar e então era ainda que logicamente esperar uma série de nãos, não dormiam mais, não comiam mais e estavam ficando egoístas.

Pois para você eu escreveria cartas fazendo o seguinte apelo e lhe cobrando a seguinte confissão: Quando estiver sendo incendiado peça uma mão que você possa sustentar porque morrer num fogo queimado é o mesmo que reutilizar lágrimas de uma tarde de nada.

ap.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Só não preste o favor da atenção

E se tem uma coisa que eu admiro em nós é a maturidade ao calar, nós sabemos ficar calados. Calar é bem mais do que falar, aprendi isso depois de algumas aflições ao perceber o quanto você havia dito no silêncio e acima de tudo, o quanto você nem havia pensado em dizer. Eu fui aprendendo você com o tempo e deve-se a esse aprendizado todo o silêncio, mas entenda antes de qualquer coisa que não é silêncio propriamente dito, silêncio seria a ausência de palavras e isso nos transborda a mente de tal modo chegando a doer, então como tudo até agora o nosso calar não possui nome, ele fica calado juntos a nós. Às vezes ao telefone eu escuto alguns gemidos, mas quando você fala... Com essa voz de como ao começar nunca fosse parar, é quase o melhor momento do meu dia, digo quase, pois o melhor do meu dia com você são esses teus ataques de carinho de me apertar até os joelhos, perguntar pelas minhas bochechas e abraçar ternamente minha boca. Falar minha boca me constrange um pouco, logo, paro por aqui num dos meus ataques de silêncio, escute o que quiser porque é somente o que eu tenho a dizer.

ap.

Segredos de cozinha

Marlena gostava de fazer tempestade em copo d’água. Arrumava qualquer desculpa pra provocar um belo tsunami na xícara de café logo pela manhã bem cedo. Dizia-se sempre atolada com o trabalho domestico, o tal motivo para tanta reclamação e carnavais fora de época. Mas eu sempre achei que havia motivo maior vindo de dentro, dentro dela esse gosto pelas tempestades. Era um mistério a desvendar, como as historias de Sherlock Holmes, devoradas por mim. E Marlena parecia tão normal, uma dona de casa qualquer. Apenas parecia porque eu sabia que no fundo havia um gosto ainda maior do que pela chuva barulhenta e atordoante. Eu nunca cheguei a descobrir, pois foi justamente ela quem me contou, disse bem simples com voz suave e afinada de dona de casa, passando as mãos delicadas de unhas nuas no bolso do avental: “Eu gosto mesmo é de pedir desculpas”.

ap.

sábado, 4 de setembro de 2010

Os olhos de Marla

E se recostaram entre os cantos da parede. Não há nenhum relato de constrangimento, pois eram por demais íntimos sendo um o outro e o outro, o outro. Pensaram na leve absorção de navegar por mares nunca antes navegados e assim os dias consistiam em pensar e no simples navegar pelos olhos. Eram uns olhos sobre os quais se escreveria tantos poemas, eram uns olhos brilhantes de musa abandonada atravessando a rua vazia, estando todos por completo no bonde que alçava vôo pela rua quadriculada. Eram olhos de animal esguio e astuto em pronta partida para correr. Os dois olhos eram cada um de cores diferentes, um dos parecia mais com uma mistura de marrom e violeta, o outro era azul céu ao meio dia. Eram olhos desenhados a mão, ao mesmo tempo em que levemente caídos eram também rapidamente arqueados. Olhos de terror acompanhados de pupilas tenebrosas. Os olhos eram isso tudo e um pouco mais, pois no se recostar entre os cantos da parede se navegava de olhos fechados.

ap.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Querida querida

Ah querida, porque andas assim? De maneira tão desolada? De braços fechados para o nada e boca aberta em desmazelo porque ninguém a vê, porque apenas pode andar de boca aberta até secar sua garganta pelo vento sujo da cidade suja nesse país sujo dentro bem dentro, bem ao fundo desse mundo sujo. Por que ainda não se matou? Porque ainda não se jogou lá daquele sexto andar do sexto prédio na rua seis? Ah minha querida, querida, querida, querida... Você é minha querida sabia?! Você não se joga de lugar nenhum, nenhum prédio, ponte, escada, o escambau, seja o que for você não se joga minha querida. Você não se mata, não se fere, não se arrisca, não sangra, não vive. Você minha Querida querida, anda só de boca aberta com desleixo sugando o mundo que se mata e se joga e sangra e fere, pura e simplesmente sugando o mundo que vive desapercebendo que você anda de boca aberta espreitando o sujo mundo, mundo sujo. Mas é sempre assim e você sabe muito bem que é, depois que você passa a se matar e ferir, você não percebe mais as pessoas de boca aberta pela rua ou tão somente não percebe as pessoas que sangram pelo prazer do saber o sangue sempre ali. Então é por isso minha Querida querida? Que você não se mata, não sangra nem fere? Só porque queres saber o rumo do sangue e a sujeira da rua? Eu entendi minha Querida, que você não se mata porque já está morta.

ap.