quarta-feira, 30 de junho de 2010

Caleidoscópio

Ontem nós nos vimos e não foi de todo mal. O mar estava calmo e aquele barulho das folhas dos coqueiros é o meu favorito, já eram bem umas quatros horas da tarde, mas as pessoas daqui só fumam depois das dez, por isso estávamos pensando no que fazer ali enterrando os pés na areia úmida e clara da praia. Como teria sido a ultima vez em que eu entrei no mar? Eu me perguntava ora de olhos abertos ora de olhos fechados, não lembrava de forma nenhuma, devia fazer muito tempo mesmo, poderia sim claro, lembrar o ano ou em qual das férias de verão, mas não me passava na mente lembrar apenas disso, um dos momentos mais desesperadamente taciturnos que nós temos é não lembrar da alegria e quase sempre não lembramos mesmo. Não, eu não ia catar conchinhas e não ia caminhar, eu não voltaria na casa pra pegar uma bola e não estava nem um pouco afim de um sorvete. Enterrar meus pés na areia não estava de todo mal. E se você quer saber o silêncio também não era nada mal. Mas havíamos feito um esforço pra sair do cobertor quente de gente preguiçosa em praia, vestir qualquer roupa, esquecer as sandálias e descer até onde o vento bate mais forte, até onde a visão é mais limpa. Havíamos feito isso para chegarmos a algum lugar, e chegando a algum lugar achamos que precisávamos procurar por algo e somente procurando dentro de nós mesmos é que acharíamos. Dito e feito.

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terça-feira, 29 de junho de 2010

Chesire

Desculpe se ela não podia escrever nada feliz. E depois o papel estava tão longe que ela decidiu dizer tudo sem nenhum ensaio. Tudo sobre aquelas tais gotas e sobre a água que corre, corre, transborda, molha, afoga. Corre veloz a tempo de não ver. Transborda barulhenta entre beijos e abraços. Molha os olhos cansados. Afoga, afoga e somente afoga a alma em presságio. Ela decidiu puramente dizer, tudo sobre aquelas tais gotas até a ultima gota.

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La bruja

Ele me perguntou se poderia entrar. O que poderia eu responder? Mesmo que não quisesse eu sabia que ele irromperia porta adentro sem minha permissão, era puramente piada que ele estava a fazer quando me questionando. Deixei-o entrar afinal, que ao menos eu fizesse de conta que me restara alguma vontade bem obedecida. Entrou de nariz empinado e postura que sabia se expressar mais que Frida Kahlo...

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domingo, 27 de junho de 2010

Emoções de cozinha

[...]Ela passou o peito da mão desocupada na testa, tentando desgrudar todos os fios que haviam escorregado com saudades da boca e implicantes com ela. Lorenzo deveria ter ficado, Frida estava sem pressa. Frida tinha tudo na ponta da língua, mas era covarde demais para falar, ela preferia subestimar tudo até morrer, até ele morrer. Frida estava num beco sem saída, um beco escuro onde não se tem visão suficiente para ver o céu. Frida queria viver, mas teria que pagar caro por isso, teria sua memória até o fim. Um desejo anulava o outro automaticamente.[...]

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sexta-feira, 25 de junho de 2010

A falta

E eu já havia escondido tanta falta de amor, tanta falta de dor e corações partidos que quando ele me olhou em meio a multidão eu não fiz menor questão de ir até lá, porque eu já andava escondendo tanta falta de abraços e tanta mais tanta mais tanta falta de histórias bobinhas a ser contadas embaixo do lençol que eu achei insípido e desnecessário tê-lo em mim porque eu estava ainda aos poucos fazendo uma coleção demorada da falta que havia em mim que isso o fez gritar, mas eu já demonstrava tanta falta de audição. Havia em mim tanta falta de fatalidades.

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quinta-feira, 24 de junho de 2010

Desatino

Um dia você acorda e descobre que dentro do seu bolso existe a resposta pra tudo. Ai você começa a tentar colocar tudo dentro do seu bolso porque é lá que está toda resposta, todo o conhecimento almejado por você. E você o tem. Isso é fantástico. E outro dia eu descobri que não se pode colocar tudo dentro do seu bolso do conhecimento, chamamos assim. Descobri que não cabia aquele meu globo de luz, nem minha câmera do céu, nem meus óculos egocêntricos, nem minhas borboletas aquáticas, nem meu chapéu redondo, nem meus olhos de mãos, nem minhas almofadas indianas, nem meu batom vermelho e minha peruca de Marilyn Monroe, nem minhas bolhas de sabão, não cabia nem mesmo minha estrela preferida, que petulância minha estrela não caber no meu bolso. Mas sem essas coisas inúteis pra onde eu iria? Ia virar mochileira sem bagagem nos bolsos? Não se pode ir aonde se quer ir de mãos vazias, de mãos vazias não se pode ir a lugar nenhum. Decido. Decido trocar minha calça por um vestido sem bolsos. Ficarei por aqui mesmo até que você apareça e se disponha a carregar tudo por mim.

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Clarice Lispector

Mesmo minhas alegrias, são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado com papel enfeitado de presente nas mãos - e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, então raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.

sábado, 19 de junho de 2010

Bilhete

Querido Nill,

Quero te contar que nos dias que estão frios, você pode considerar como os dias sem você, são nublados eles todos, me deixa um medo bobo de nunca mais voltar a ser o que era, o que era com você ou antes de você, pra mim tanto faz, mas o medo de continuar assim persiste nesses dias frios, neles eu tomo um café bem quente, tão quente de queimar a língua, faço de propósito para tentar fazer da vida uma vida normal, não essa perfeição que é viver sem você.

Com fervor, Heide.

Ps: A normalidade é real e a perfeição é uma mentira.

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Crianças são como algumas ciências exatas, ou você bate ou ignora. É pueril assim. Ou você ama ou não ama.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Sua resposta está E...RRADA

E ele foi logo respondendo que era afeto, a resposta para minha pergunta há muito tempo já sendo esperada era afeto. A-F-E-T-O? Eu nem me preocupei em dizer que ele estava errado, o tempo todo eu não vinha falando em afeto, o que o fez pensar em afeto? Eu não falava disso em nenhuma de nossas conversas, uma única, não. Não falava. Não falo. Até nem falo mais porque quando ele me respondeu somente levantei-me e irrompi porta a fora, é. Não preciso escutar a todo tempo o que não me é esperado, não que eu goste dos previsíveis, não que eu goste de alguma coisa, alguém. Não que eu espere algo, alguém. Não que eu não fale. Não que eu não pergunte, porque sim eu pergunto. Uma vez eu perguntei. Não que eu não responda, mas é. Eu não respondo, nem ele mais, nem mais ele, não que eu não brinque com as palavras, porque sim, eu brinco.

Alguns dias atrás. Horas. Não sei, não lembro:
- E eu, o que quero dizer com inclinação?

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segunda-feira, 14 de junho de 2010

Não espero milagres

A humanidade precisa entender que quando duas pessoas não foram feitas para ficarem juntas, elas não foram feitas para ficarem juntas. E nem que o raio o parta, o mundo não vai mudar seu curso, em contrapartida, a chuva não cai do chão para bater no céu, ela não vai molhar seus pés primeiro. Não vamos acender a luz ao amanhecer. É elementar, a Terra não vai deixar de ser um circulo perfeito, o tempo não irá voltar nem parar e não irá acelerar. Você não tem de viver andando e ruminando pelo caminho mais sombrio e difícil. Vamos perceber ao invés de insistir e necessitamos apenas da ciência exata, aquela mesmo que todos os seres nasceram sabendo. Ama, porque quando a gente ama o mundo vira uma cama. Dessas camas de água que podem explodir a qualquer momento, eu disse qualquer momento. Ou nunca.

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Respectivamente

Para mim sempre foi tudo ou nada. Vê como uma palavra pode mudar todo o curso dos acontecimentos, percebe como mais importante do que as palavras grandes, as palavras bonitas, talvez sejam as pequenas e solitárias palavras aptas a muito, as mais significativas, uma única letra intrometida entre duas palavras é capaz de mover mundos e fundos, responsável por me levar ao que chamamos de bem ou mal, porque para mim sempre foi tudo e nada.

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segunda-feira, 7 de junho de 2010

Medo

Medo. Medo do que não existe, medo daquilo que consiste. Medo de acabar na forca dos pensamentos interrompidos e não ter nenhum meio para se gabar. Medo do lado ruim das coisas boas, medo de coisas boas. Medo da veemência. Medo da pequena esperança que por medo ainda tenho. Medo.

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sábado, 5 de junho de 2010

Meio a meio

- Por onde diabos você anda?
Ele me perguntou bem assim, em tom de reprovação precipitada sabem?! Como era um bom ator, meu pai que o diga. E eu queria responder que ando mesmo com os diabos, ando meio atordoada, assustada com qualquer coisa, mas eu nunca gostei mesmo de palhaços, pois é. Nunca gostei de palhaços e as lagartixas são asquerosas, afinal, o rabo delas cresce mesmo de volta, descobertas de criança que tenho nessa idade, uma vergonha eu diria. E queria mesmo até responder que ando com vergonha. Eu queria responder onde eu queria estar. E eu até responderia que queria continuar andando com os diabos, assustada com répteis pequenos, e evitando ir ao circo. Mas é que depois daquele momento quase imperceptível, aquele entre o dormir e o acordar, eu descobri que há alguns minutos eu já não andava com os diabos, nem os répteis me faziam pular pra cima da cadeira, nem os palhaços me atormentavam mais. E eu finalmente pude responder que, eu respondi que, eu prometi que, eu apenas sabia o que era que eu, eu... Eu ainda não respondi.

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quarta-feira, 2 de junho de 2010

A resposta não é "divergentes"

E foi engraçado o dia, como foi. Eu passei por você e me comportei como se não a tivesse visto, não sei por que eu fiz isso, achei que agir casualmente era assim, fazer de conta que não conhece justamente quem você reconheceria numa multidão, justamente aqueles olhos eu não poderia deixar passarem despercebidos, e não deixei acredite, era tudo fingimento de uma mente arrogante. E é por esse motivo que continuarei a passar por qualquer lugar demonstrando certa indiferença á seu respeito, mas saiba que eu sempre irei notar e também como já é de perceber desde aquele dia engraçado que eu mesmo possuindo uma mente arrogante irei ao fim dar meia volta, olha-la como se fosse à primeira vez, um olhar de surpresa e felicidade terna, e lhe beijarei as bochechas bronzeadas, porque eu bem sei que elas continuam bronzeadas, como sempre estiveram e sempre vão estar, as bochechas macias esperando meus beijos arrogantemente gentis.

ap.