quarta-feira, 1 de junho de 2011

Sentimentos redondos

As pernas se assemelhavam as de uma galinha, tão curtas que eram. Ainda carregava os pés pequeninos de uma criança. No decorrer dos quadris e cintura era um violão desafinado. Os seios amáveis, porém nada maternais: seios de uma prostituta virgem. O sexo se arredondava nas dimensões dos sentimentos. Uma solidão de cor inundava suas mechas em redenção aos ombros. Seu paladar era aguçado, talvez porque não escutasse nem enxergasse muito bem. Sentia cada língua em sua língua com veemência, como se decifrasse todos pelo gosto que tinham. Particularmente. Suas mãos eram jovens e firmes. Sua postura exigente. Catalina se refugiava na varanda bordando ponto cruz com uma paciência interminável, até o sol dizer adeus e então Catalina abrigava-se novamente na sala, sem o ponto cruz, lia, desenhava, ou o que viesse a mente. Nos dias em que não se ocupava no marasmo, batia-lhe a porta Cosme, que com uma doçura enjoativa trazia-lhe presentes de todos os tipos vindos da Arábia ou de algum ponto esquecido na Europa. Trazia-lhe linhas em cores tão diferentes quanto seus pavões de ponto cruz ficavam. Cosme lhe dava cartões postais românticos em lugares sobre os quais eles nunca iriam se atrever a visitar. Trazia-lhe também instrumentos de cordas, todos que se podiam imaginar, violinos ensolarados. Trazia-lhe caixinhas de músicas onde uma bailarina solitária rodava sem parar numa só posição cansativa.
Enquanto pontilhava o pano, no vai e vem da agulha, Catalina espetava-se de boa vontade para agravar uma adrenalina ao seu dia, isso não bastava, pois Catalina havia encontrado maus costumes, trancava-se no banheiro varias vezes ao dia e chorava num desespero silencioso. Ninguém sabia quando ela chorava no banheiro e se soubessem não saberiam então dizer o porquê de tanto desespero. Cosme era nulo aos pensamentos românticos de Catalina. Assim como qualquer moço nas redondezas esquecidas pelo tempo, pelo mundo, esquecidas pela natureza das coisas. Eis que de tempos em tempos, bem como anos em anos, os ciganos visitavam o povoado, traziam suas artilharias e seus lenços cheirando aventura. Cobravam tão caro quanto se podia cobrar do povoado, pelas suas descobertas impertinentes sobre o mundo que conheciam de cabo a rabo. Suas formosas e imundas dançarinas encantavam todo o âmbito masculino do povoado. Cobertas e logo pesadas ciganas com suas miçangas coloridas, elas esperavam na tenda os jovens em busca de colonizar estrelas. E tornava homens, cada menino que ali entrava. Catalina enjoativa das lágrimas e de certos outros maus costumes como receber Cosme em sua casa atravessou a porta de saída e em passos longos, quase saltitando, foi até as tendas. Esgueirou-se entre as tralhas dos nômades e então, despiu-se das roupas e vestiu-se das miçangas coloridas. Deitou-se na rede e esperou, era noite e tudo estava num breu ilimitado de solidão. Quando sentiu uma respiração pesada, se remexeu na rede e penteou as sobrancelhas com os dedos frios, finos e firmes. Uma mão brusca apertou o pano rente à rede. Catalina continuou sem dizer uma palavra. Tateou a solidão da noite em busca da respiração do rapaz invisível. Encontrou seus ombros ao passo que ele encontrou sua cintura de violão. Catalina havia perdido nas lágrimas o paladar aguçado, mas conservara intacta a loucura do coração. Catalina e Cosme brincaram a noite toda. Pelo amanhecer quando Cosme já havia ido, ainda no escuro. Catalina esgueirou-se de volta a sua casa, sem que ninguém a percebesse, sentou novamente como todos os dias de sua memória na cadeira de balanço em frente às begônias da varanda e começou de onde havia parado a pequena pena de pavão reluzente. Quando Cosme chegou neste dia, não lhe trouxe nada nas mãos, porém seu rosto trazia um rastro de homem, Cosme percebeu também no rosto de Catalina uma aparência menos prostituta e mais santa. Daí em diante os choros no banheiro cessaram e as bailarinas nas caixinhas de música caíram de moda. Catalina e Cosme casaram-se três meses depois. Devido às temerosas insistências dela em não deitar-se com seu marido, foram ter um único filho três anos depois. Na noite concebida Catalina sentiu no paladar um deja vú descomunal, Cosme lembrou-se misteriosamente dos instrumentos de cordas. Ela sabendo sempre que ainda que tentasse nunca sairia daquele povoado, nem parte dela, nem ela inteira. Nem ao menos um postal de si mesma ela receberia. O destino lhe pregava um conto tortuoso e os maus costumes, a solidão da noite e as miçangas pesadas voltaram.

ap.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

sem coerência,