quarta-feira, 15 de junho de 2011

Calera

Desde então passou a usar preto até seu ultimo dia. Deixou para sempre uma eterna vassoura detrás da porta para expulsar toda e qualquer visita atrevida, repudiada desde seu pé esquerdo sobre o qual se costumava entrar. Calçava o par de chinelos mais velhos que tinha e presenciava o sol se pondo, escondendo-se no telhado de sua casa, fugia dela tão rapidamente e mal se podia contemplar a luz, já vinha o breu e junto com ele pálidas estrelas para vivenciar um já morto dia. Antes de dormir num longo sono lúcido, sem descansar as pálpebras, escrevia cartas a seres tão invisíveis quanto ela. As cartas eram usadas pela manhã, onde serviam de lenha para o fogão. Escrevia sobre tudo, o tudo que não vivenciava, o tudo de sua rua que não olhava, o tudo sobre o sol que nunca conversava, o tudo sobre os espelhos côncavos onde ela estava bem no foco, o tudo sobre o nada de tudo. Havia tanta coisa para se falar que duas paginas não bastavam para uma noite. Era uma criatura atrasada na caminhada do mundo, onde todos iam a frente em mais de dez mil passos dela. Ela ia atrás sozinha, amassada, renegada, chorosa, venenosa, azeda, Calera ia atrás de todos, levando nas costas os pecados dos outros, com um escudo forte que a protegia de todos os sorrisos do mundo.

ap.

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sem coerência,