sexta-feira, 26 de maio de 2017

Zico

Chegou a hora de falar sobre ele. Dessa vez é preciso romantizar? Eu sei, eu sei... Eu sempre começo falando bonito, apaixonada e depois rasgo tudo, estraçalho, jogo o objeto mais pesado que eu consiga achar pela janela sem me importar se vai machucar alguém lá embaixo. Então posso começar só falando dele assim sem pretensão nenhuma. Ele era que nem esse texto, corrido, sem freio, rápido, de relance. Era jovem, mas por dentro tinha muito mais idade. Morava com um homem muito, muito velho, daqueles que nem celebra mais o aniversário porque já desistiu de contar e por vários momentos parecia mesmo é que numa noite chuvosa e quente, dessas asfixiantes e raras, eles de repente trocaram de corpo, de repente mesmo assim como quando a chuva para. O velho no corpo do jovem então me conheceu, eles nem perceberam, alguém deveria ter percebido, mas eram por demasiado solitários e enquanto o Jovem ia trabalhar pesado no armazém, carregando caixas de noodles pra lá e pra cá, pisoteando seus próprios pensamentos, enquanto isso, o Velho jogava LOL o dia inteiro e jantava amendoim japonês. Certo, entende-se então que era um velho mesmo, daqueles bem caquéticos no corpo de um Jovem que de certa maneira poderia eventualmente ser chamado de charmoso por alguém nesse mundo que é tão grande e existem tantas pessoas com gostos tão distintos e extraordinários. Eu achei uma vez que havia beleza, outra vez eu nem achei, mas lembro-me que na maioria das vezes eu o queria para mim, pois ao mesmo tempo em que era um velho apenas comum, tinha lá num fundo aquela tola ingenuidade que só os que são bem velhos têm, então era o que se pode dizer: um charme a parte? “Eu não sou um homem velho” ele disse uma vez e eu ri porque ele não sabia de nada, nem de si mesmo. Claro que eu também não sei nada sobre mim mesma e posso por vezes ter falado imbecilidades como esta “Eu não calço mais 36, agora é 35, como isso é possível? Talvez todas as fábricas de sapato do mundo inteiro fizeram algum tipo de reunião e decidiram secretamente trocar os números dos moldes”. Ou quando eu, depois de um ano tomo um copinho de café no copo plástico descartável que causa câncer e fico com as mãos tremendo e o coração assim como se estivesse novamente apaixonado por esse velho jovem, aí eu me lembro dele de súbito como um raio naquela chuva abafada e então escrevo esse texto, que também acaba corrido, sem trava, ligeiro, de vislumbre.

ap.

terça-feira, 25 de abril de 2017

Acanhado estudo acerca de demoníaca conduta e angelical disparate cap. 1

Sobre a hipótese de que a intimidade nada mais é que a ilusão de estrangeira aproximação, na verdade nunca houve intimidade alguma senão apenas recortes e trechos de uma ideia de conforto repentino ou duradouro em face de um mascarado e inexorável individualismo inerente. Embora a premissa ainda não se prove verdadeira, os estudos e pesquisas feitos na atual sociedade que insiste em socar o estômago e viver numa montanha russa ainda que tenha acrofobia, apontam para inevitáveis erros de percepção principalmente quando se fala sobre os limites da liberdade que em suma podem roubar violentamente a intimidade e transforma-la em constrangimento, pois é inverossímil que a mente crie em sua infantil independência limites quando de fato tudo tem seu próprio limite preestabelecido portador de vida própria. Segundo o Demônio, a insensibilidade parte da sensibilidade para consigo mesmo, o amor próprio (ainda que secretamente falso) nunca foi tão importante para a figura demoníaca. Sua conduta diante do mundo que o cerca não poderia ser mais simples do que apenas se embasando na ideia de que a agressividade é mais recompensadora do que a bondade, quando sempre em papel rude o Demônio é reconhecido, este se torna o mais afável dos homens diante do menor e mais ordinário ato de etiqueta. Em contra partida está o Anjo, esta angelical mulher, pura e amável com todos inclusive com o rude e demoníaco homem afável às vezes, encontra-se numa rua sem saída quando tudo que esperam e recebem dela é a imaculada gentileza, o Anjo então se acha incapaz e proibido de proferir inofensivo desacato, pois se o faz, este é massacrado e mandado para as chamas, ao contrário do Demônio que transita com segurança e liberdade entre o céu e o inferno.

ap.

sábado, 15 de abril de 2017

O menino elegante no uniforme militar

Não era o uniforme que o deixava charmoso, era ele quem deixava o uniforme militar de estampa camuflada muito mais elegante. Não era o sentimento sobrenatural de não conseguir dormir, nem a desculpa de ser apenas sobrenatural por si só. Parecia ser as piadas cozinhadas, reduzidas e ácidas, inesperadamente apostadas com a destreza de quem passou anos estudando estratégia e método de aplicação da melhor resposta na hora certa. Quebrou-me as pernas, poliu-me o sorriso e me inspirou, para tanto estou aqui. Tinha cheiro de orvalho seco e eu dei-lhe o nome de Lucas, não sei se por conveniência ou destino. No inicio foi um pouco difícil eu admito. Orgulho e preconceito, o que é mais importante? Ambos mostraram-se ilusão após familiaridade estabelecida, primeiro camaradagem, depois espreitando por detrás de um singelo enigma a afeição floresceu, esta tão devagar e discreta que ele deu-me o nome de SoMi, flor que floresce lentamente. O romance então se achou capaz de caber entre o tanto que não tinha sido dito e mais o tanto que ainda haveria de ser. Durante a maior parte do tempo tínhamos conversas fragmentadas, como se usássemos a gambiarra dos dois copos descartáveis unidos por uma frágil linha de costura, a conversa se partia em tantos pedaços que dizíamos oi seguidas vezes sem ao menos perceber e vários assuntos perdiam o sentido com o tempo. Um dia ele perdeu seu copo, e eu desolada fiquei sem saber que raio tinha partido aquela linha, quando por outros meios ele veio até mim, de conversa ainda despedaçada e não mais sobrenatural, dessa vez um menino sensato, diria quase um homem, ocupado com seu trabalho e cansado ao chegar em casa, mas entre o café no escritório, o macarrão instantâneo e o banho quente sempre havia nossa conversa, nosso oi espaçado, nosso tudo bem demorado, nosso o que você está fazendo tardio, e finalmente o nosso descanse um pouco triste e abatido. Porque a linha de costura era longa demais, mesmo depois de partida, o caminho que ela percorrera ainda existia e era pungente. Era doloroso saber que não adiantava, não adiantaria nunca tentar aproximar as almas ou ainda mais dificilmente seduzir os corpos. É claro que quando eu encostava a boca no copo descartável e respirava nervosa, você não podia ver o brilho nos meus olhos, está muito claro também que quando você deixou seu copo cair no ônibus e o procurou apressado para me contar que tinha passado num lindo parque primaveril, eu não pude ver seu rosto revirado em desapontamento. Knoc, knoc, quem está aí? Ele saiu de fininho pela porta, como todos fazem. É fácil reconhecer o fim, quando você já viu passar pela porta o mesmo de sempre: amor, esperança e miséria.

ap.

sábado, 8 de abril de 2017

Aquele Pub vintage, oriental e solitário

A gente descendo cambaleante a escada do pequeno bar de esquina, a rua esverdeada, as luzes dos postes abrandadas pela nevoa espessa da madrugada. Você me olhando através dos seus óculos redondos, eu olhando de volta arregalando os meus. Você franzindo a boca como quem segura uma gargalhada bêbada, eu disparando em riso solto num desarranjo de quem bebeu além dos limites. Você chegando mais perto semicerrando os olhos, eu segurando a gola da sua jaqueta imitando uma pose de luta, impiedosamente desajeitada. Você segurando a minha gola, pronto para a batalha, eu pisando sem sentir o seu tênis surrado, você também não sentindo o peso da minha sola de borracha. Você me beijando de súbito, atrapalhado, eu devolvendo o beijo, torta, tardia. Você passando os braços por debaixo do meu casaco, eu segurando sua gola mais forte, eu entrelaçando as mãos no seu pescoço, lenta. Sinto o beijo quente como um copo de tequila, sua língua enrola na minha, o beijo se despede com uma leve mordiscada sua, como quem diz: não vá embora, fica mais um pouco, tem café. Fica vai, eu faço um bolo. Eu conserto o ventilador. Eu compro uma grade de cerveja. Eu deixo você repetir. Eu durmo no sofá e você dorme na minha cama, mas fica vai. Eu quase andei com você até em casa, quase subimos os quatro lances de escada apoiando-se um no outro, tateamos em todos os bolsos a procura das chaves e encontramos enfim pendurada no cós do seu jeans. Eu quase entrei no seu apartamento e liguei a vitrola, quase escolhi Led Zeppelin, mas você queria Louis Armstrong, quase discutimos sobre isso e Whole Lotta Love começou a rodar. Eu quase cedi aos seus flertes de tentar me conquistar, eu quase fui até a janela e esperei você terminar seu cigarro, quase pensei que enquanto você fuma, traga e assopra pro outro lado parece que os relógios param de funcionar, eu quase disse também que você deveria um dia parar, ou eu só quase pensei nisso? Só queria que você soubesse que em todas as vezes que eu não fiquei, em todas as vezes que eu não fui eu quase o fiz.

ap.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Age Of Aquarius

A hipocrisia me julga com frieza nos olhos porque sempre fui tão desapegada, sem rótulos eu dizia, eu sou new age. Eis que esta manhã eu acordei querendo cozinhar, colher um limão no quintal e fazer uma bela de uma marinada, chorar com muita cebola picada e sentir o prazer de jogar a cebolinha cortada em rodelinhas para finalizar o prato, eu me sinto realmente contente na parte da cebolinha. Quando acordei pensei de súbito se você lembrou-se do guarda-chuva porque amanheceu bonito pra chover. Assustei-me porque me senti tão Amélia essa manhã, veja só, uma pessoa que defende tão veemente o direito de negar qualquer trabalho doméstico, o direito de por os pés pra cima e dominar a arte de não fazer absolutamente nada, esta manhã eu acordei querendo filhos seus, querendo te segurar quando você sentir que vai cair, querendo ser sua meia nessa manhã tão molhada. Por causa de ontem à noite, nesta manhã eu faria tudo por ti, porque ontem à noite desejei como numa reza que você acordasse hoje querendo ser meu guarda-chuva, minha meia, meu copo d’água no meio da noite, minha escova de dente, meu remédio de dor de cabeça, a melhor ameixa da minha semana, aquele curativo no meu ombro que sucedeu porque minhas unhas estão muito grandes e eu não sei corta-las, nunca soube, porque sou filha única, mimada.  Desculpe-me, eu sei que você nunca vai me levar a sério, não por qualquer motivo tradicionalista, pois tenho consciência da minha dignidade. Os motivos são outros, forasteiros. A alma se descobre bela quando acariciada, e pensa em sua insipida ignorância que acariciar é simples, pensa que qualquer um se deixa acariciar, mas você é um cervo assustado e eu uma predadora atrasada. Você é a cautela e eu sou o estilhaço. Você disse que está cauteloso e eu disse meu bem, eu não sei o que é isso, porque é achando que eu nado bem pra caramba que mergulho, mas era cimento e eu só espatifei.

ap.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Meu Querido

Hoje quando acordei de um sono perturbado andei pelo quarto até cansar as pernas, procurei um espelho para me olhar nos olhos, terminei não tendo coragem. Justo nesta noite senti o gosto do arco vazio quando se dispara uma flecha. Eu já deveria saber que não é bom ser animal, que é menos doloroso quando se age por intermédio da razão. Mas eu nunca sigo esses conselhos meu Querido. Você deve saber, eu não sou do tipo que lê poesia, mas li uma esses dias que me fez chorar. Veja só, eu estava me sentindo tão forte, sem derramar uma lágrima há semanas, chorei com uma dúzia de palavras. Logo eu que a cada manhã me sentia mais eu, neste dia, me senti apenas como uma nuvem pesada que de repente desabou sobre um frágil guarda-chuva. Eu costumo ter esse dom de ser nuvem pesada no céu mais limpo. É importante saber que nós estamos aqui somente para aprender, às vezes não notamos e é só quando a nuvem seca que nós percebemos, estávamos crescendo. Meu Querido, eu devo lhe dizer, simplesmente porque tenho tendência a ser animal, que quando a lágrima pesou sobre meus olhos e escorreu gelada sobre as minhas têmporas, eu me assustei, não porque não esperava sofrer por você, já que sou tão animal busco por instinto o sofrimento, mas porque não esperava que minha nuvem já estivesse tão pesada, e minha flecha tão preparada para o disparo.

ap.