Chegou a hora de falar sobre ele. Dessa vez é preciso
romantizar? Eu sei, eu sei... Eu sempre começo falando bonito, apaixonada e
depois rasgo tudo, estraçalho, jogo o objeto mais pesado que eu consiga achar
pela janela sem me importar se vai machucar alguém lá embaixo. Então posso começar
só falando dele assim sem pretensão nenhuma. Ele era que nem esse texto,
corrido, sem freio, rápido, de relance. Era jovem, mas por dentro tinha muito
mais idade. Morava com um homem muito, muito velho, daqueles que nem celebra
mais o aniversário porque já desistiu de contar e por vários momentos parecia
mesmo é que numa noite chuvosa e quente, dessas asfixiantes e raras, eles de
repente trocaram de corpo, de repente mesmo assim como quando a chuva para. O
velho no corpo do jovem então me conheceu, eles nem perceberam, alguém deveria
ter percebido, mas eram por demasiado solitários e enquanto o Jovem ia
trabalhar pesado no armazém, carregando caixas de noodles pra lá e pra cá,
pisoteando seus próprios pensamentos, enquanto isso, o Velho jogava LOL o dia
inteiro e jantava amendoim japonês. Certo, entende-se então que era um velho
mesmo, daqueles bem caquéticos no corpo de um Jovem que de certa maneira
poderia eventualmente ser chamado de charmoso por alguém nesse mundo que é tão
grande e existem tantas pessoas com gostos tão distintos e extraordinários. Eu
achei uma vez que havia beleza, outra vez eu nem achei, mas lembro-me que na
maioria das vezes eu o queria para mim, pois ao mesmo tempo em que era um velho
apenas comum, tinha lá num fundo aquela tola ingenuidade que só os que são bem
velhos têm, então era o que se pode dizer: um charme a parte? “Eu não sou um
homem velho” ele disse uma vez e eu ri porque ele não sabia de nada, nem de si
mesmo. Claro que eu também não sei nada sobre mim mesma e posso por vezes ter
falado imbecilidades como esta “Eu não calço mais 36, agora é 35, como isso é possível?
Talvez todas as fábricas de sapato do mundo inteiro fizeram algum tipo de
reunião e decidiram secretamente trocar os números dos moldes”. Ou quando eu,
depois de um ano tomo um copinho de café no copo plástico descartável que causa
câncer e fico com as mãos tremendo e o coração assim como se estivesse
novamente apaixonado por esse velho jovem, aí eu me lembro dele de súbito como
um raio naquela chuva abafada e então escrevo esse texto, que também acaba
corrido, sem trava, ligeiro, de vislumbre.
ap.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
sem coerência,