quarta-feira, 15 de junho de 2011

Calera

Desde então passou a usar preto até seu ultimo dia. Deixou para sempre uma eterna vassoura detrás da porta para expulsar toda e qualquer visita atrevida, repudiada desde seu pé esquerdo sobre o qual se costumava entrar. Calçava o par de chinelos mais velhos que tinha e presenciava o sol se pondo, escondendo-se no telhado de sua casa, fugia dela tão rapidamente e mal se podia contemplar a luz, já vinha o breu e junto com ele pálidas estrelas para vivenciar um já morto dia. Antes de dormir num longo sono lúcido, sem descansar as pálpebras, escrevia cartas a seres tão invisíveis quanto ela. As cartas eram usadas pela manhã, onde serviam de lenha para o fogão. Escrevia sobre tudo, o tudo que não vivenciava, o tudo de sua rua que não olhava, o tudo sobre o sol que nunca conversava, o tudo sobre os espelhos côncavos onde ela estava bem no foco, o tudo sobre o nada de tudo. Havia tanta coisa para se falar que duas paginas não bastavam para uma noite. Era uma criatura atrasada na caminhada do mundo, onde todos iam a frente em mais de dez mil passos dela. Ela ia atrás sozinha, amassada, renegada, chorosa, venenosa, azeda, Calera ia atrás de todos, levando nas costas os pecados dos outros, com um escudo forte que a protegia de todos os sorrisos do mundo.

ap.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Sentimentos redondos

As pernas se assemelhavam as de uma galinha, tão curtas que eram. Ainda carregava os pés pequeninos de uma criança. No decorrer dos quadris e cintura era um violão desafinado. Os seios amáveis, porém nada maternais: seios de uma prostituta virgem. O sexo se arredondava nas dimensões dos sentimentos. Uma solidão de cor inundava suas mechas em redenção aos ombros. Seu paladar era aguçado, talvez porque não escutasse nem enxergasse muito bem. Sentia cada língua em sua língua com veemência, como se decifrasse todos pelo gosto que tinham. Particularmente. Suas mãos eram jovens e firmes. Sua postura exigente. Catalina se refugiava na varanda bordando ponto cruz com uma paciência interminável, até o sol dizer adeus e então Catalina abrigava-se novamente na sala, sem o ponto cruz, lia, desenhava, ou o que viesse a mente. Nos dias em que não se ocupava no marasmo, batia-lhe a porta Cosme, que com uma doçura enjoativa trazia-lhe presentes de todos os tipos vindos da Arábia ou de algum ponto esquecido na Europa. Trazia-lhe linhas em cores tão diferentes quanto seus pavões de ponto cruz ficavam. Cosme lhe dava cartões postais românticos em lugares sobre os quais eles nunca iriam se atrever a visitar. Trazia-lhe também instrumentos de cordas, todos que se podiam imaginar, violinos ensolarados. Trazia-lhe caixinhas de músicas onde uma bailarina solitária rodava sem parar numa só posição cansativa.
Enquanto pontilhava o pano, no vai e vem da agulha, Catalina espetava-se de boa vontade para agravar uma adrenalina ao seu dia, isso não bastava, pois Catalina havia encontrado maus costumes, trancava-se no banheiro varias vezes ao dia e chorava num desespero silencioso. Ninguém sabia quando ela chorava no banheiro e se soubessem não saberiam então dizer o porquê de tanto desespero. Cosme era nulo aos pensamentos românticos de Catalina. Assim como qualquer moço nas redondezas esquecidas pelo tempo, pelo mundo, esquecidas pela natureza das coisas. Eis que de tempos em tempos, bem como anos em anos, os ciganos visitavam o povoado, traziam suas artilharias e seus lenços cheirando aventura. Cobravam tão caro quanto se podia cobrar do povoado, pelas suas descobertas impertinentes sobre o mundo que conheciam de cabo a rabo. Suas formosas e imundas dançarinas encantavam todo o âmbito masculino do povoado. Cobertas e logo pesadas ciganas com suas miçangas coloridas, elas esperavam na tenda os jovens em busca de colonizar estrelas. E tornava homens, cada menino que ali entrava. Catalina enjoativa das lágrimas e de certos outros maus costumes como receber Cosme em sua casa atravessou a porta de saída e em passos longos, quase saltitando, foi até as tendas. Esgueirou-se entre as tralhas dos nômades e então, despiu-se das roupas e vestiu-se das miçangas coloridas. Deitou-se na rede e esperou, era noite e tudo estava num breu ilimitado de solidão. Quando sentiu uma respiração pesada, se remexeu na rede e penteou as sobrancelhas com os dedos frios, finos e firmes. Uma mão brusca apertou o pano rente à rede. Catalina continuou sem dizer uma palavra. Tateou a solidão da noite em busca da respiração do rapaz invisível. Encontrou seus ombros ao passo que ele encontrou sua cintura de violão. Catalina havia perdido nas lágrimas o paladar aguçado, mas conservara intacta a loucura do coração. Catalina e Cosme brincaram a noite toda. Pelo amanhecer quando Cosme já havia ido, ainda no escuro. Catalina esgueirou-se de volta a sua casa, sem que ninguém a percebesse, sentou novamente como todos os dias de sua memória na cadeira de balanço em frente às begônias da varanda e começou de onde havia parado a pequena pena de pavão reluzente. Quando Cosme chegou neste dia, não lhe trouxe nada nas mãos, porém seu rosto trazia um rastro de homem, Cosme percebeu também no rosto de Catalina uma aparência menos prostituta e mais santa. Daí em diante os choros no banheiro cessaram e as bailarinas nas caixinhas de música caíram de moda. Catalina e Cosme casaram-se três meses depois. Devido às temerosas insistências dela em não deitar-se com seu marido, foram ter um único filho três anos depois. Na noite concebida Catalina sentiu no paladar um deja vú descomunal, Cosme lembrou-se misteriosamente dos instrumentos de cordas. Ela sabendo sempre que ainda que tentasse nunca sairia daquele povoado, nem parte dela, nem ela inteira. Nem ao menos um postal de si mesma ela receberia. O destino lhe pregava um conto tortuoso e os maus costumes, a solidão da noite e as miçangas pesadas voltaram.

ap.

A filosofia de Lionel

Ele sentou num banco improvisado e chorou, fumou tantos cigarros incabíveis nas minhas duas mãos, perdi a conta, nem prestava atenção nisso, talvez, pensei uma vez só, e não pareceu importante. Ele me mostrou várias coisas, inventou outras muitas. Suas lágrimas roncavam no nariz, e a mão não saia dos olhos. Ele olhava sempre o chão ou de vez em quando apontava o olhar em mim. Passaram-se as horas, logo depois passou-se a chuva, passou-se então a paciência, e eu fui embora. Mas como pode no meio do clímax o protagonista desaparecer? Como pode o nexo não existir? Pode o sujeito ser literalmente inexistente na oração? Bem depois do sentido vem a contradição. E ele só soube conjeturar o meu sotaque do norte, como se um ensaio fosse pertinente. Bebeu o único café que pedimos, em goles envenenados. Soube amar quando devia isso ao mundo. Soube mentir sobre seu verdadeiro sentimento. Tirou um lenço do bolso e limpou as poucas lágrimas tímidas; os olhos em épocas secas. Bateu o pé direito, lembrando a nona sinfonia: não teve regresso. Contou algumas moedas ao pagar, não obteve troco. Não obstante, ele queria ir até lá fora, mas eu não iria, estava frio. Eu tinha um teto e saberia deixa-lo fixo para sempre, nada de empurrar a vassoura para reclamar sobre a bagunça do andar de cima. O calor depois da chuva foi um sinal de que eu teria uma noite em solidão, tortuosa. Na vila tinha sempre um delírio. Os mosquitos esgotavam-me os dedos ao espanados. O olhar amarelo de algumas pessoas me dava também sempre maus pressentimentos, ele não tinha um olhar amarelo, embora não fosse branco como uma pomba. Na minha lembrança a cor estaria mais para invisível, inexistente. Ele foi. Eu fui. Para dois caminhos diferentes. O meu tinha ipês amarelos e uma lama turbulenta ao sul, no inverno. Leite quente que recebia gentilmente todas as intermináveis manhãs. Ele deve ter perdido bem mais que um pôr-de-sol ou o visto inconsciente na praia. Eu não tinha o mar, mas tinha toda a ventania suculenta como agridoce. Eu vivia aqui. Ele vivia lá. E enfim sempre pensei se eu também tinha uma vida paralela a esta, outras realidades: após grandes decisões.

ap.

Os olhos das castanholas

“Era uma vez, uma pequena menina que de uma hora para outra se viu nas aventuras de Alice, em meio a um mundo de maravilhas, ela conversou com uma lagarta, comeu diversas coisas de formas e cores diferentes, adorava as cores ainda que seus olhos fossem a ausência delas, a menina se viu num mundo tão ligeiramente dela que de olhos fechados ela viu o mar junto às estrelas, do lado à lua, do outro o sol e todas as coisas do universo, porque para ela o mundo parecia estar diminuindo, coitadinha, o mundo já era tão pequeno. Porque também ela encontrou cada pato estranho cantando numa afinação de sino. Porque ela até não soube responder muitas perguntas. Porque tinha cada rei e rainha lhe narrando sobre as cartas estarem tão bagunçadas. Porque ali tinha cinzas e ali tinha lenha, o fogo ultimamente, não mais se encontrava naquela aldeia. [...]” Como seria nostálgico se Helena prestasse atenção, entretanto ela estava preocupada demais com os legumes que iria comprar num Allmart, logo depois de ter de entregar filmes numa locadora abafada em plena sexta chuvosa. O documentário polêmico se desenrolava na televisão pequena no fundo da loja. Praticidade é um prazer do dono: pequeno e portátil. Helena havia alugado na quarta, dois filmes, um sobre al-qaeda para Jarbas, assuntos políticos envolvendo religião o deixava tagarela. Outro sobre a vida, algo de Woold Allen. Ao sair empurrou a porta ao invés de puxar, não tinha um aviso e todos da loja lançaram os dois olhos para ela, menos um pássaro no canto junto à vitrine onde bicava sua água tranquilamente. A manhã mais parecia um entardecer e Helena se sentiu confusa sobre as horas, olhou no relógio e muitas outras vezes mais, se certificando de que era cedo demais para voltar em casa. Depois dos legumes estarem numa sacola frágil de plástico, ela andou em passos lentos até a Rua das Castanholas. Uma ótima hora para acender um cigarro, mas Jarbas estava em casa para o almoço e Helena não se sujeitaria a criticas secas com toses mais secas ainda, não nessa sexta. Chegando: Ele certamente estaria enterrado no trabalho em seu note book implacável. Helena fez um frango xadrez, depois se juntaram os dois na sala para ver poucas notícias e qualquer filme legendado perdendo-se pelos canais da TV a cabo. Estava com trinta e tantos anos. Jarbas tinha os seus trinta e mais alguns tantos. Helena e Jarbas sentavam-se todas as sextas e deliciavam a paz reconfortante para ambos, havia mais de vinte anos. Fumavam um cigarro na varanda e numa tarde calorenta e lacrimejante dormiam: o sono era como uma linha sendo costurada com elegância e destreza. Não se importavam com o dia em que haviam sem o parecer dialogado com uma lagarta, se empanturrado de pipoca e seus temperos misteriosos. Ouvido ópera num show de talentos. Deixado tantos espaços vazios nas Diretas do Coquetel. Lido crônicas pra boi dormir e claro, haviam comprado mais de um isqueiro por mês. “A questão era mesmo “o quê?”. Olhando em volta, viu as flores do mato e as folhas de capim, mas não conseguiu encontrar nada que parecesse apropriado para beber ou comer nas circunstâncias. Ali perto, crescia um cogumelo grande, mais ou menos da mesma altura que ela. Depois de procurar em baixo dele, dos dois lados e atrás, ocorreu-lhe que podia também tentar ver o que havia em cima dele. Esticou-se toda e ficou na ponta dos pés, espiando por cima da beirada do cogumelo. Seus olhos imediatamente deram com os de uma enorme lagarta azul, sentada lá em cima, com os braços cruzados, calmamente fumando um cachimbo oriental bem comprido e cheio de voltas, sem prestar a menor atenção nela nem em mais nada.”.

ap.

Roxxie se meteu em confusão

Eu me lembro bem do dia em que Roxxie chegou à escola correndo, abrindo os portões que já não mais se abriam para os atrasados, sua barriga pulava para cima e para baixo numa indecisão violentamente rápida. Seus pequenos coques de cabelo, loiros, eram imperceptíveis, os olhos vermelhos e a testa suada, as têmporas pulando em simetria. Roxxie parecia cansada, em tédio e assustada, se antes não fosse o marasmo a que tinha se submetido. Palavra por palavra foi dita e enquanto isso o medo mau lhe passou pela cabeça, mas depois foi como uma tsunami em sonho, certeiro, apunhalando suas vítimas. É assim uma descoberta, quando é desvendada.

ap.