segunda-feira, 14 de abril de 2014

Acontece

Aconteceu num fim de tarde cheio de vento, nuvens rosa, sua boca tingida de vinho, contraída, concentrada. Ela se deu conta de que não era feliz e que nem se quer fazia questão de ser a muito.  Não sabia o que lhe cravava um sorriso, nunca soubera até então o que lhe fazia bocejar, o que via quando olhava, e porque não era como os outros que olhavam o que viam. Numa esperança tardia de se encontrar, ainda que fosse pra chorar, não se via em lugar algum, não via rumos, estradas, caminhos, escolhas. Queria, mas não sabia o que. Chorava, mas não sabia o por que. Sofria, sofria muito, por todos, menos por ela mesma. Sentia no peito uma saudade imensa de ser novamente uma criança e só ter de se preocupar com os amores alheios. Queria viver numa caixa, sozinha, sem um mundo inteiro a sua volta. Sonhar a realidade dos sonhos. Viver a dignidade deles. Decidir. Validar. Nesse mundo em que vivia cheio de tristeza onde os portões de ferro faziam um barulho aterrorizante nas madrugadas e um ladrão cantava atrás do muro sem temer a morte ou a solidão. Sentia-se triste, muito triste, como se estivesse muito longe de si mesma. Como se o restinho dela estivesse bebericando o vinho e se entristecendo, e a outra parte morasse numa montanha muito distante e cortasse lenha todos os dias para se esquentar a noite, e neste fim de tarde estivesse vendo o mesmo céu rosa que ela, mas estivesse olhando o que via e não doravante, tentando ver o que olhava. Alguma parte dela estava feliz num morro sem trilhas. 

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sem coerência,